domingo, 18 de outubro de 2009

teoria da situaçAo jurídica

Situações subjetivas e processo
José Maria Rosa Tesheiner
(Professor de Processo Civil na PUC-RS)
Resumo
O autor expõe sua concepção de situações ou estados jurídicos fundamentais , explicando a dinâmica das relações jurídicas, em especial, a da relação jurídica processual. Incidentemente, mostra a identidade essencial dos conceitos de ônus e de direito formativo.

Introdução
O Direito regula o convívio. Regula relações interpessoais, ordenando, proibindo ou permitindo. Daí a relevância jurídica dos atos humanos devidos (ordenados ou proibidos) ou permitidos. Ordenam-se, proibem-se ou permitem-se atos a benefício da comunidade, de grupos, ou de indivíduos determinados ou indeterminados. Chamam-se relações jurídicas as relações interpessoais reguladas pelo Direito.
Situações subjetivas são momentos de uma relação jurídica. São frações temporais de uma relação interpessoal regulada pelo Direito. Supõem-se um ato, devido ou permitido, e dois sujeitos, um dito ativo e outro, passivo. Sujeito ativo não é necessariamente aquele que pratica o ato, mas aquele que, na situação jurídica, encontra-se na posição subordinante. Simetricamente, sujeito passivo é aquele que se encontra na posição subordinada, em relação ao ato considerado. A subordinação é estabelecida pelo Direito a benefício de quem pratica o ato, a benefício de terceiro ou da comunidade.
Eis aí as premissas para a apresentação das situações jurídicas fundamentais.

Situação de crédito e débito
Preferimos falar em situações subjetivas de crédito, e não em direitos subjetivos de crédito, por causa da dinâmica das relações jurídicas. Costuma-se dizer, por exemplo, que o comodato compreende apenas uma obrigação, a cargo do comodatário, que deve devolver a coisa emprestada. Isso não é inteiramente verdadeiro, porque, apresentando-se o comodatário ao comodante, para devolver a coisa emprestada, surge para o comodante o dever de recebê-la. A aceitação constitui, aí, ato devido pelo comodante.
Supõem-se, na situação subjetiva de crédito, duas pessoas, um credor e um devedor, e um ato (positivo ou negativo) imposto ao devedor. O credor é o sujeito ativo dessa relação, porque é seu o interesse que é tutelado pela norma que impõe a prática (ou omissão) do ato. É a essa situação que se refere a doutrina que vê no direito subjetivo um interesse juridicamente protegido (Jhering [1] ).
Há outra situação subjetiva, a de poder e sujeição, quando se define o sujeito ativo, não como beneficiado, mas como titular do poder de exigir. Essa é a situação visualizada pela doutrina que conceitua o direito subjetivo nos termos da chamada teoria da vontade (Windscheid [2] , Savigny [3] ) .
Situação de poder e sujeição
Supõm-se, na situação poder e sujeição, duas pessoas e um ato. Sujeito ativo, no caso, é a pessoa que pode (ou deve) praticar o ato; sujeito passivo, aquele que sofre os efeitos do ato. O ato é praticado a benefício da comunidade, de um grupo de indivíduos, de pessoa determinada ou indeterminada, ou do próprio titular do poder.
No caso de poder-dever, há duas situações subjetivas relativas ao mesmo ato, uma de crédito, correspondente ao dever, em relação ao beneficiado pelo ato; a outra, de poder, em relação ao que sofre os efeitos do ato.
O que caracteriza a posição do sujeito passivo é a circunstância de sofrer os efeitos do ato, nada importando que seja por ele prejudicado ou beneficiado.
Os direitos formativos constituem espécie de poder e sujeição. Define-se direito formativo como o poder de influir, mediante declaração de vontade, sobre a condição jurídica de outro, sem o concurso da vontade deste [4] . Não coincidem os conceitos, porque o ato, a que se refere a situação de poder e sujeição, pode ser um ato de força. É o caso, por exemplo, do hospedeiro ou do locador, que aprende bens do hóspede ou do locatário, para a constituição de penhor legal [5] .
Comparativo das duas situações
Na situação de crédito e débito, considera-se a relação existente entre aquele que deve praticar o ato (devedor) e aquele que é beneficiado pelo ato (credor). Na situação de poder e sujeição, considera-se a relação existente entre aquele que pratica e aquele que sofre os efeitos do ato, desconsiderando-se o beneficiado, que tanto pode ser o titular do poder, quanto um terceiro ou até mesmo aquele que sofre os efeitos do ato. Quando um pai castiga (moderamente) seu filho, este sofre os efeitos do ato, ainda que seja castigado "para seu bem".
Já se observou que, no caso de poder-dever, há duas situações subjetivas, relativas ao mesmo ato: uma, de poder e sujeição; a outra, de crédito e débito.
Um ato único pode envolver três sujeitos: aquele que o pratica, o que lhe sofre os efeitos e o beneficiado. Em consequência, há três relações a considerar: a que se estabelece entre o que pratica e o que sofre os efeitos do ato; a relação entre o que pratica o ato e o beneficiado e, finalmente, a relação entre o que sofre os efeitos do ato e o beneficiado. Desconsideramos esta última relação, porque ela é simples reflexo de uma das anteriores. Não se trata, pois, de uma situação fundamental, mas de uma situação derivada ou reflexa.
O zero como situação jurídica
Para completar o quadro das situações jurídicas fundamentais, é preciso acrescentar, ainda, o zero, ou seja, a situação ou estado de liberdade. Ocorre quando entre dois sujeitos não há relação jurídica, porque ela ainda não surgiu ou porque se extinguiu, não se cogitando de ato que possa ou deva ser praticado por qualquer deles. Precisamos desse conceito para explicar a dinâmica das situações subjetivas.
Dinâmica das situações subjetivas
Melhor do que os conceitos de direito subjetivo e de direito formativo é o de situações subjetivas, porque explicam a dinâmica das relações jurídicas. Tome-se novamente, como exemplo, a hipótese de comodato. Temos, inicialmente, o zero, ou seja, a inexistência de relação jurídica entre as partes. Emprestada a coisa, surge para o comodatário o dever de devolvê-la (situação de crédito e débito). O comodante tem o poder de denunciar o contrato (situação de poder e sujeição). Exercido esse direito formativo, surge para o comodatário a obrigação de devolver a coisa (situação de crédito e débito). Oferecendo o comodatário a coisa ao comodante, tem este o dever de recebê-la (situação de crédito e débito). Recebida a coisa em devolução, extingue-se o contrato (situação zero: estado ou situação de liberdade).
Outro exemplo, este do Direito Administrativo: transcorrido o tempo exigido para a aposentadoria voluntária, o funcionário adquire o direito à aposentadoria, podendo requerê-la a qualquer tempo (direito formativo, estado de poder e sujeição). Feito o requerimento, surge para o Estado o dever de aposentar o servidor (situação de débito e crédito).
Situações subjetivas processuais
A chamada teoria do direito abstrato de agir concebe a ação como um direito subjetivo contra o Estado, apresentado como devedor da prestação jurisdicional. Trata-se, pois, de uma situação de crédito e débito. Na bela conceituação de Pontes de Miranda (que não coincide com a do Código de Processo Civil) sentença é ato de entrega da prestação jurisdicional. Nessa linha de pensamento, a sentença não é necessáriamente um ato de natureza declarativa. Pode ter outra natureza, como ocorre quando o juiz satisfaz o crédito do autor, adimplindo em lugar do devedor, mediante atos de execução.
A ação como direito à prestação jurisdicional do Estado vincula-se à ideologia liberal. Mas não é preciso filiação à ideologia totalitária para reconhecer que a relação entre o autor e o juiz não é apenas a de um credor em face de seu devedor. É também uma relação de poder e sujeição. Provocando o exercício da jurisdição, o autor submete-se ao poder jurisdicional. Vai buscar lã e pode sair tosquiado.
Talvez com maior coerência, a teoria chiovendiana do direito concreto de agir [6] concebe a ação como direito, não contra o Estado, mas contra o réu, direito, porém, cuja existência somente é reconhecida se acolhido o pedido do autor. Terminando o processo por sentença meramente processual ou com rejeição do pedido, terá havido processo sem ação. É absurdo condenar-se as teorias concretas, com a observação de que não explicam a ação improcedente. Como se Wach [7] e Chiovenda não soubessem que o autor pode ser vencido! Esses autores não buscaram explicar o direito ao processo, mas o dever do Estado de tutelar situação substancial do autor (direito a sentença de acolhimento do pedido).
Na concepção de Chiovenda, a ação é um direito formativo do autor contra o réu, portanto, uma situação de poder e sujeição. O autor, que tenha razão, tem o poder de, mediante declaração de vontade (exercício da ação), obter a atuação da vontade da lei. De regra, o Estado não se preocupa com a violação de direitos ou interesses individuais. Mas o prejudicado, querendo, pode provocar a atuação da vontade da lei: o devedor é condenado e executado e assim se satisfaz, através do processo, o crédito do autor, existente no plano do direito material.
Essa concepção de Chiovenda pode ser ampliada, para compreender, não apenas os casos de acolhimento do pedido, mas também os casos de rejeição. Observe-se que o autor, tendo ou não razão, tem o poder de submeter o réu ao processo. Isso foi bem destacado por Moreira Alves, definindo ação como "a faculdade que tem alguém de provocar o Estado para que este venha prestar jurisdição e de submeter a pessoa do réu, para receber também, essa jurisdição" [8] .
Essa concepção tem a vantagem de mostrar que existe relação processual, não somente nas linhas autor-juiz, juiz-réu (teoria angular da relação processual), mas também na linha autor-réu (teoria triangular da relação processual). Nega-se a realidade, quando se afirma não existir relação processual entre o autor e o réu, porque os atos de cada parte inegavelmente projetam-se sobre a esfera jurídica da outra, prejudicando-a ou beneficiando-a.
O processo é uma relação dinâmica, mais claramente do que as relações de direito material. Sucedem-se, em seu curso, situações de crédito e de poder, até que ele se extingue, com desvinculação das partes, que assim retornam ao estado zero, ou estado de liberdade.
Mais do que no direito material, o processo comporta a existência de ônus, correspondente às situações em que a omissão de um ato prejudica o onerado. Há não apenas o ônus de provar, mas também o de alegar, o de impulsionar o processo, de preparar o recurso, de exibir documento, de comparecer à audiência, etc.
Direitos formativos e ônus são ambos espécies da categoria mais ampla das situações subjetivas de poder e sujeição. Na verdade, direito formativo e ônus são conceitos substancialmente idênticos. Apenas a formulação é diferente: positiva, no caso do direito afirmativo; negativa, no caso de ônus. "Podes praticar o ato x, que te beneficia", eis a fórmula do direito formativo. "Se não praticares o ato y, serás prejudicado", eis a fórmula do ônus.
A utilidade do conceito de situação subjetiva de poder e sujeição, mais amplo que o de direito formativo, revela-se quando se observa a existência, no processo, de atos, menos comuns no direito material, que constituem exercício de poder, mas não mediante declaração de vontade. É o que ocorre, por exemplo, na penhora, mediante apreensão de bens do devedor. Prescinde-se da vontade do executado, que pode até mesmo ignorar a existência do ato. A busca e apreensão de menor consitui exercício de poder. É ato voluntário, mas não tem a natureza de declaração de vontade. De igual forma, a execução de um despejo ou o cumprimento de um mandado de reintegração de posse.
O processo não se limita a atuar no mundo jurídico. Atua no mundo fático, por vezes de forma dramática, destruindo bens e enjaulando indivíduos.
Concepção de Goldschmidt
As idéias aqui expostas não coincidem a concepção de Goldschmidt, que vê o processo, não como relação jurídica, mas como uma situação jurídica.
Segundo esse autor, as normas processuais têm por destinatário o juiz, não constituindo para as partes senão avisos de que ele observará determinada conduta e, a final, pronunciará uma sentença com determinado conteúdo. Os vínculos que daí decorrem para as partes não são propriamente "relações jurídicas" (consideração "estática" do Direito), isto é, não constituem direitos nem deveres, mas "situações jurídicas" (consideração "dinâmica" do Direito), quer dizer, situações de expectativa da conduta do juiz, e, em última análise, do futuro julgamento; em uma palavra: expectativas, possibilidades e ônus. Os direitos processuais não são senão expectativas. O próprio direito à tutela jurídica (ação processual) não é, nessa perspectiva, mais do que uma expectativa juridicamente fundada. Por sua vez, os ônus, "imperativos do próprio interesse", ocupam no processo o lugar das obrigações. A situação jurídica diferencia-se da relação juríica não só por seu conteúdo, mas também porque ligada, não à existência, mas à prova de seus pressupostos. Trata-se de um conceito especificamente de direito processual [9] .
Conclusão
As situações subjetivas de que falamos têm seu lugar na Teoria Geral do Direito. Não excluem a idéia de relação jurídica, pois dela são momentos. Comportam direitos e deveres, tanto quanto expectativas e ônus. O que há de comum entre as duas concepções é o caráter dinâmico dos fenômenos a que se referem.
[1] Rudolf von Jhering. O espírito do Direito romano. Trad. Rafael Benaion. Rio de Janeiro, Alba, 1943. p. 219-20.
[2] Bernardo Windscheid. Diritto delle Pandette. Trad. Carlo Fadda e Paolo Bensa. Torino, Editrice Torinese, 1902. v. I. t. I, p. 169-71.
[3] M. F. C. De Savingny, Sistema del Derecho romano actual. Trad. Jacinto Mesía y Manuel Poley, 2. ed., Madrid, Góngora, s/d. t. I, p. 258.
[4] Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil. Trad. J. Guimarães Menegale. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 1965. v. I, p. 15-6.
[5] Código Civil, art. 776. Novo Código Civil, art. 1.469.
[6] Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito processual civil. Trad. J. Guimarães Menegale. São Paulo, Saraiva, 1965, v. I, p. 20-4).
[7] Adolf Wach, La pretensión de declaración. Trad. da ed. de 1889. Buenos Aires, Europa-América, 1962, cap. II, p. 39-63,
[8] José Carlos Moreira Alves. Direito subjetivo, pretensão e ação. Revista de Processo, v. 12, n. 47, p. 109-23, jul-set/1987.
[9] James Goldschmidt. Derecho procesal civil. Trad. Leonardo Prieto Castro. Barcelona, Labor, 1936. p. 7-9.
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