segunda-feira, 28 de setembro de 2009

3. Da competência exclusiva – Art. 89 do Código de Processo Civil:
Diferentemente da hipótese prevista no artigo 88 do CPC, o artigo 89 regula a competência com “rigidez absoluta” da autoridade judiciária brasileira, ensejando, nas hipóteses que menciona, “carência absoluta da jurisdição estrangeira”. [51] Compete à autoridade judiciária brasileira, com a “exclusão de qualquer outra”, conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil (inciso I) e proceder a inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional (inciso II). Nestas hipóteses, a sentença estrangeira eventualmente proferida não terá nenhuma validade. Os princípios da submissão e da efetividade entrelaçam-se nas ações relativas a imóveis situados no Brasil. A submissão decorre, no ponto, da necessidade de uma decisão que seja aqui exeqüível.
O texto do inciso I do artigo 89 repete o que já vinha disposto no artigo 12 da LICC, norma que, de resto, é adotada com freqüência pelas legislações estrangeiras. A expressão “relativa a imóveis” é ampla, não se restringindo, pois, às ações fundadas em direitos reais. Refere-se, pois, a qualquer ação referente a bens imóveis [52], inclusive fundada em direito obrigacional como, por exemplo, a locação, desimportando, ainda, o tipo de demanda, se condenatória, se declaratória, se constitutiva, etc. [53] Se houver relação entre o direito alegado e um imóvel, a competência da Justiça brasileira prevalecerá sobre qualquer outra.
No que concerne a imóveis situados no estrangeiro não há regra expressa no Código de Processo Civil. Segundo Barbi, considerando que, de regra, os Estados não reconhecem a validade de sentenças estrangeiras versando sobre imóveis situados em seu território e o princípio da efetividade, seria inútil a sentença proferida no Brasil acerca de imóvel situado em país estrangeiro, mesmo que pertencente a réu aqui domiciliado, criticando, de toda forma, a omissão do legislador quanto ao ponto. Athos Gusmão Carneiro [54] refere decisão do E. STF [55] em que teria havido afirmação da competência da justiça brasileira para decidir acerca de imóvel situado no Paraguai. Na ocasião, contudo, o e. STF entendeu que não detinha a natureza de “ação relativa a imóvel” a demanda em que, exibindo pré-contrato de promessa de venda, feito por documento particular, os autores, domiciliados em Foz de Iguaçu, pediam fossem os réus condenados a outorgar escritura definitiva no Paraguai. Entendeu-se não ser aplicável, assim, o artigo 89, inciso I, a contrario sensu. Por outro lado, a justiça paraguaia havia declinado da competência para conhecer da ação.
O inciso II do artigo 89 determina a competência exclusiva da autoridade brasileira para proceder a “inventário e partilha de bens situados no Brasil”, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional. O conceito de bens adotado na norma é amplo, abrangendo imóveis, semoventes, móveis, títulos cambiais, depósitos bancários, dinheiro em moeda, ações, direitos de crédito em geral, etc. Lembra Arruda Alvim [56], contudo, que os bens objeto do inventário, por definição legal, são direito real imobiliário, considerando que a lei civil (art. 80, II do atual Ccivil), considera imóvel para fins legais o direito à sucessão aberta, havendo, portanto, quase identidade entre os princípios informadores das regras dos incisos I e II do artigo 89. O direito sobre bem imóvel, seja pela natureza (inciso I), seja por definição legal (inciso II), constitui-se hipótese de competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira.
Segundo o mesmo autor o texto do artigo 89 do CPC comporta dois esclarecimentos: “O primeiro é o de que o legislador deixou claro que é irrelevante a circunstância de ser o de cujus estrangeiro, porquanto, igualmente se o for, inalterada ficará, ainda assim, a competência da autoridade judiciária brasileira, com exclusão de todas as outras. Em segundo lugar, fala a lei ‘ainda que tenha residido fora do território nacional’. Qual será o significado desta frase? Literalmente, levaria à conclusão de que, se se usou do perfeito do subjuntivo, no momento do óbito, o autor residiria em território nacional. Mas, é curial, que tal interpretação não se coaduna com o sentido da lei, apesar de mal redigida e, sabemos, que a lei não contém palavras inúteis. E, além disto, seria uma hermenêutica tautológica. É necessária alguma agilidade e boa vontade para interpretar o texto. Afigura-se-nos querer o texto significar que, mesmo que no instante do óbito, resida fora do território nacional, mesmo assim subsiste a competência absoluta da autoridade brasileira para proceder o inventário e partilha, dos bens aqui situados. (...) É evidente que a regra se aplica também a arrolamento, pelo critério teleológico, tendo em vista os fins que inspiraram o legislador.” Também comentando o disposto no artigo 89, inciso II do CPC, diz Barbi [57] que o texto, de forma expressa, refere-se à partilha, alertando que essa, quando houver mais de um herdeiro, deverá ser aqui realizada, podendo, quando for o caso, ser feita por escritura pública, na forma do art. 1.029 do CPC.
É absolutamente pacificado na jurisprudência do E. STF o reconhecimento da competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira para proceder ao inventário e a partilha de bens situados no Brasil. Nesse sentido tem-se, exemplificativamente, os seguintes julgados do E. STF: Sentença Estrangeira n° 2.151- Paraguai, Tribunal Pleno, Relator Min. Xavier de Albuquerque, j. em 07.04.76, publicada na RTJ 78/49; Sentença Estrangeira n° 2.289-EUA, Tribunal Pleno-EUA, Rel. o Min. Moreira Alves, j. em 18.09.75, publicada na RTJ n° 76/41; Sentença Estrangeira n° 3.780-Alemanha, Rel. Min. Francisco Rezek, j. em 06.05.87, publicado na RTJ n° 121, pág. 925.
De outra parte, havendo bens situados fora do Brasil a serem inventariados, mesmo que tenham pertencido a um cidadão brasileiro ou estrangeiro domiciliado no Brasil, a respectiva ação de inventário não pode ser processada perante a autoridade judiciária brasileira. Nesse sentido, o E. STJ, apreciando o Recurso Especial n° 37.356-5, manteve acórdão que havia indeferido pedido de sobrepartilha relativo a imóvel situado na Argentina, deixado em razão da morte de estrangeira residente no Brasil. No recurso especial os recorrentes haviam invocado o princípio da unidade sucessória, bem como ofensa aos arts. 1.040 e 1041 do CPC. No entanto, para a Corte Especial de Justiça: “A decisão recorrida não contrariou a legislação federal apontada; antes, cumpriu a norma inscrita no art. 89, inciso II, do Código de Processo Civil, interpretada a contrario sensu.” [58]
O E. STF, em extenso acórdão prolatado no RE n° 99.230-RS [59] entendeu que, havendo bens situados no estrangeiro, descaberia à Justiça brasileira computá-los na quota hereditária a ser partilhada no país. Tratava-se de ação que a primeira esposa do “de cujus” ajuizara contra a segunda esposa para haver herança que lhe cabia, composta de bens situados no Uruguai e no Brasil, tendo havido “expediente sucessório” (inventário) no Uruguai. No corpo do acórdão, assim manifestou-se o Relator: “Entendeu, entretanto, o acórdão, que metade do quinhão hereditário a que tem direito a autora, correspondente a 6,25% da herança de Luiz Alberto Serralta, tem de ser calculado também sobre os bens partilhados no Uruguai. E assim entendeu, porque, mesmo admitindo, em tese, a dualidade dos juízos sucessórios, em atenção ao mesmo disposto no artigo 89, II, deve o juiz brasileiro resguardar o princípio da universalidade da herança e o regime matrimonial de comunhão de bens, imperantes na lei brasileira, quando, como no caso, o legislador estrangeiro, ou o juiz estrangeiro, ‘desconsiderando o regime estabelecido pela lei brasileira – e no Brasil mantinham domicílio os nubentes – resolve atribuir os bens situados no estrangeiro apenas a um dos cônjuges- no caso, o cônjuge varão – ou resolve, v.g., atribuir os bens situados no estrangeiro apenas a um dos cônjuges – no caso, o cônjuge varão- ou resolve, v.g., distribuir os bens com obediência a regras sucessórias outras que não as vigentes no Brasil.’ Esse tema do acórdão recorrido é atacado pela argüição de negativa de vigência do artigo 89, II, do Código de Processo Civil, razão do deferimento do recurso extraordinário. (...) Parece-me que dúvida não pode restar de que o v. acórdão não apenas ‘cogitou de bens imóveis sitos no estrangeiro’, como os levou em consideração efetiva, com clara incidência sobre a partilha. E, sem ainda se saber em que quantidade, -diz-se nos autos serem mais valiosos que os ficados no Brasil-, dever-se-á, nos termos do decisum recorrido, efetuar-se uma compensação, em favor da meeira, que tomará integral meação dos bens aqui localizados. Isso equivale, torna-se a repisar, a verdadeiro inventário dos bens existentes no Uruguai, cogitando-se deles quanto a valores atribuídos. Cuido aí esteja bem demonstrada a negativa de vigência do art. 89, II, do CPC, consagrador da pluralidade dos juízos sucessórios, prática corrente do direito internacional, pelo incontornável princípio da lei da situação da coisa protegido pela soberania, a privar de efetividade a decisão estrangeira que se reporte aos bens constantes de herança, ela mesma considerada imóvel (art. 44, II do CC).(...) A realidade incontornável é que se estaria incorporando ao inventário procedido no Brasil um valor econômico pertinente a um patrimônio separado, por efeito do princípio da “lex rei sitae”, sem que esse bem jurídico tenha existência no território nacional. Circunstâncias, aliás, que reclamariam uma pragmática, dificultosa, senão impossível execução face ao princípio da efetividade.”
No que se refere à partilha de bens em caso de divórcio, é de ser destacado que o E. STF alterou seu entendimento. Inicialmente, a posição da Excelsa Corte era no sentido de que o artigo 89, inciso II era aplicável não só “ao inventário e à partilha mortis causa, como também ao inventário e à partilha conseqüentes à separação judicial e ao divórcio” [60] No entanto, já a partir do julgamento no agravo regimental em homologação de sentença estrangeira n° 2.396 [61] observou-se modificação do entendimento antes mencionado, o que foi expressamente confirmado na Homologação de Sentença Estrangeira n° 3408- Estados Unidos [62]: “Homologação de Sentença estrangeira. Separação dos Cônjuges. Partilha de Bens. É homologável a sentença estrangeira que homologa acordo de separação e partilha dos bens do casal, ainda que situados no Brasil, posto que não ofendido o art. 89 do CPC; na conformidade dos precedentes do E. STF (RTJ 90/11, 109/38;112/1006).” No corpo do acórdão diz o relator: “A controvérsia que se suscitou a respeito da aplicação do art. 89, II do CPC teve trato correto no parecer à vista dos precedentes da Corte. O entendimento que prevalece, nos termos do acórdão proferido pelo Pleno na Sentença Estrangeira (AgRg) n° 2.396 é o de que ‘os bens partilhados ao ensejo do divórcio para cuja apreciação inegavelmente competente era a Justiça Americana à qual ambos os cônjuges se submeteram como nacionais e ali residentes e domiciliados’, não sendo, pois, de equiparar-se à sucessão “mortis causa” que o dispositivo processual sobre competência internacional tem em mira (RTJ 90/11). Sob a mesma inspiração é que os precedentes mais recentes, da lavra do então Presidente Cordeiro Guerra (RTJ 109/38) e do Presidente Moreira Alves (RTJ 112/1006), consideraram homologável sentença estrangeira que cuida de imóvel situado no Brasil, em que pese o art. 89, I, contrapartida do art. 89, II do CPC, acima questionado.”
Mais recentemente, na Homologação de Sentença Estrangeira n° 7337 este entendimento ficou confirmado:
“DECISÃO SENTENÇA DE DIVÓRCIO - ACORDO SOBRE BEM IMÓVEL EXISTENTE NO BRASIL - HOMOLOGAÇÃO. 1. Reinaldo Vale da Hora e Luzian de Souza Carvalho da Hora solicitam, na peça de folhas 2 e 3, a homologação de sentença de divórcio proferida pela Corte Superior do Condado de Gwinnett, Geórgia, nos Estados Unidos da América, a qual incorporou acordo de separação e convenção de bens celebrado pelas partes. O documento original foi anexado à folha 17 à 30, 71 e 72, dele constando, além da notícia do trânsito em julgado da decisão, a chancela do consulado brasileiro. A tradução, feita por tradutor juramentado, está às folhas 7 à 16 e 70. O parecer do Procurador-Geral da República, de folhas 76 e 77, é pelo deferimento do pedido sem restrições. À folha 79, despachei, a fim de que o Procurador-Geral se manifestasse sobre o fato de, na sentença, haver referência a bens imóveis situados no Brasil. Daí a peça de folha 81 a 83, com a qual o Ministério Público Federal reitera o pronunciamento anterior, registrando: No caso dos autos, a sentença homologanda, além de decretar o divórcio do casal, homologou o acordo das partes sobre partilha de bens e outros acessórios. Após nossa manifestação de fls. 76/77, retornam os autos a esta Procuradoria-Geral a fim de que se manifeste sobre o fato de, na sentença, haver imóveis situados no Brasil. Entendemos que em nada fere o direito brasileiro as disposições sobre a partilha de bens, acordadas pelas partes. Com efeito, não há dúvida de que a aplicação da lei brasileira, produziria, na espécie, o mesmo resultado, não havendo, assim, razão para que seja excluído da partilha o imóvel situado no Brasil, por não haver, no caso, ofensa ao art. 89 do Código de Processo Civil. Cabe trazer a colocação excerto da decisão do eminente Relator Ministro RAFAEL MAYER, então Presidente dessa Egrégia Corte, por ocasião do julgamento da Sentença Estrangeira nº 3888, onde deixou assentado: ‘A jurisprudência firmada nos precedentes citadas pela nobre Procuradoria-Geral e decorrentes de decisões monocráticas dos ex-Presidentes Xavier de Albuquerque e Cordeiro Guerra, está consagrada e pacificada por decisões do plenário da Corte, podendo ser citada a proferida na SE nº 2.396 - E.U.A. (RTJ 89-382) e, ultimamente, na de nº 3.408 - E.U.A., julgada em 09-10-85 de que fui relator, e na qual se decidiu, unanimemente, que a sentença estrangeira que homologa partilha de bens situados no Brasil, em ações de divórcio, não ofende o disposto no art. 89 do Código de Processo Civil’. Agrega-se aos precedentes citados a SE 7.027-8 (DJ 18-04-02), na qual formamos o mesmo entendimento, a orientação consignada pelo eminente Ministro Presidente dessa Egrégia Corte, por ocasião de seu julgamento. 2. É de frisar que a regra competência exclusiva do Judiciário brasileiro para conhecer ações relativas a imóveis localizados no Brasil - artigos 12 da Lei de Introdução ao Código Civil e 89 do Código de Processo Civil - deve ser aplicada com a cabível cautela, já que a existência de conflito de interesses sobre o bem leva a uma conduta completamente diferente quando, no divórcio, as próprias partes chegam a um acordo, ultrapassando qualquer impasse. Assim, à luz da jurisprudência desta Corte, tratando-se de composição, não se aplica a regra alusiva à atuação única e exclusiva da autoridade judicante brasileira. Confira-se com os seguintes precedentes: Sentenças Estrangeiras nºs 3.633, 3.888, 4.844 e 3.408 e Sentença Estrangeira Contestada nº 4.512. Na Sentença Estrangeira nº 3.408, restou consignado: - HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA, SEPARAÇÃO DE CÔNJUGES. PARTILHA DE BENS. E HOMOLOGÁVEL A SENTENÇA ESTRANGEIRA QUE HOMOLOGA ACORDO DE SEPARAÇÃO E DE PARTILHA DOS BENS DO CASAL, AINDA QUE SITUADOS NO BRASIL, PORTA QUE NÃO OFENDIDO O ART. 89 DO CPC, NA CONFORMIDADE DOS PRECEDENTES DO STF (RTJ 90/11; 109/38; 112/1006). HOMOLOGAÇÃO DEFERIDA". 3. Expeça-se a carta de sentença. 4. Publique-se. Brasília, 4 de abril de 2003. Ministro MARCO AURÉLIO Presidente.” [63]


ELAINE MENDONÇA LIMA

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