segunda-feira, 21 de setembro de 2009

BREVE CONSIDERAÇÕES SOBRE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA

Na consecução de seus objetivos o Estado moderno desenvolve as atividades legislativa, administrativa e jurisdicional.
Há na doutrina, porém, sérias divergências acerca da exata configuração dessas atividades estatais, mormente no respeitante à administrativa e à jurisdicional.
Para alguns, entre os quais se destaca CHIOVENDA, a jurisdição caracteriza-se pela sua natureza substitutiva da atividade alheia (das partes) pela atividade estatal, de tal sorte que no processo de conhecimento a atividade jurisdicional consiste justamente na substituição, definitiva e obrigatória, da atividade intelectiva e volitiva das partes pela do juiz, quando este afirma existente ou inexistente uma vontade concreta da lei relativamente àquelas partes; tal substituição também ocorre no processo de execução, na medida em que o Estado torna exeqüível, através de atos executórios, a vontade da lei não atendida pelo executado. E tudo isso porque, sendo vedado ao particular atuar como juiz em causa própria, o Estado atua, através de seus órgãos jurisdicionais, como juiz em causa alheia.
Já à administração faltaria esse caráter substitutivo, porquanto administrar representa, antes e acima de tudo, uma atividade imposta pela lei, direta e imediatamente, aos órgãos públicos. O Estado-juiz age atuando a lei, ao passo que o Estado-administração age em conformidade com ela; no exercício da função jurisdicional o Estado-juiz considera a lei em si mesma, ao passo que o Estado-administração a considera como norma de sua própria conduta.
Coerentemente, CHIOVENDA acaba por definir a jurisdição como sendo a função estatal que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei, mediante a substituição, pela atividade dos órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, quer para afirmar a existência da vontade da lei, quer para torná-la praticamente efetiva.
CARNELUTTI parte de sua idéia central de lide, por todos conhecida, vendo na jurisdição um meio de que se vale o Estado para a justa composição daquela, ou seja, a atividade jurisdicional por ele exercida através do processo visa à composição, nos termos da lei, do conflito de interesses submetido à sua apreciação.
Nessa medida, a distinção entre as atividades jurisdicional e administrativa repousa no caráter parcial ou imparcial do órgão que exerce uma e outra: se apenas uma parte, aquela titular do interesse em conflito com o interesse da administração, está diante do órgão estatal (o qual, por sua vez, pertence à administração cujo interesse conflita com o do particular), tudo se resolve no campo do recurso hierárquico - e administrativo, portanto -, visto que uma parte se dirige à outra, embora o faça perante órgão hierarquicamente superior àquele que praticou o ato cujo reexame é pretendido; se, ao reverso, diante do órgão estatal encontram-se duas partes, e ele se apresenta como uma individualidade independente daquela da administração pública - a qual, no entanto, se posiciona diante dele também como parte -, estar-se-á no campo do próprio e verdadeiro juízo, caracterizado pelo fato de que, nele, uma parte (contra a outra) dirige-se ao juiz a fim de que faça atuar, em relação a ela, o direito objetivo.
LIEBMAN lembra que tanto a administração, quanto a jurisdição, são exercidas através de atos de conteúdo concreto, diferenciando-se, todavia, pela circunstância de que a primeira visa sempre, através de seus atos, à proteção de determinados interesses públicos (tais como a segurança, a saúde e a instrução, atividade essa regulada e disciplinada nela lei; já a função específica da jurisdição é fazer justiça, ou seja, dar atuação à lei.
Qualquer eventual confusão entre essas atividades estatais desaparece, porém, quando se coloca a questão a nível de poder do Estado, como faz CÂNDIDO DINAMARCO.
Inerente à própria existência do Estado, o poder representa a capacidade que ele tem de impor as suas decisões, sendo exercido em conformidade com os objetivos específicos que pretenda alcançar. Destarte, a jurisdição, a administração e a legislação representam as diversas expressões do mesmo poder, diferenciando-se, pois, não ontologicamente, mas apenas em razão das funções exercidas pelo Estado. Vale dizer, a diferença entre elas reside na variedade de funções "que o Estado tem por suas e que projetam reflexos de suas próprias peculiaridades na forma, características e disciplina positiva do exercício do poder enquanto voltado a cada uma delas."
Expressão do poder estatal, a jurisdição é, por isso mesmo, una e indivisível. Ganha autonomia, diferencia-se, como visto, apenas enquanto função típica do Estado detentor desse poder.
Examinada sob tal aspecto puramente funcional, a jurisdição tem por escopo jurídico a atuação da vontade concreta da lei, através da atividade do juiz no processo, ou, em outras palavras, o Estado busca fazer valer, em concreto, o direito material, mediante o efetivo exercício de seu poder pelos órgãos judiciais; e essa função estatal (jurisdicional) deve ser desenvolvida, até mesmo por conveniência (melhor e mais ágil distribuição da justiça), por uma pluralidade de órgãos (os integrantes dos diversos escalões do Poder Judiciário), cada qual deles apto a exercê-la nos limites impostos pela lei.
Daí tradicionalmente dizer-se que a competência é a medida de jurisdição de cada órgão judicial, isto é, ela quantifica a jurisdição a ser exercida pelo órgão judicial singularmente considerado; ou, na lição de LIEBMAN, ela determina, para cada órgão singular, em quais casos, e em relação as quais controvérsias, tem ele o poder de emitir provimentos, delimitando em abstrato, ao mesmo tempo, o grupo de controvérsias que lhe são atribuídas.
O poder jurisdicional é exercido em sua plenitude pelos órgãos dele investido, sendo incorreto afirmar-se, por conseqüência, que um tenha mais ou menos poder que outro, da mesma forma que representa um equívoco falar-se em espécies de jurisdição. Nessa medida, portanto, a competência não representa a quantidade de jurisdição conferida a cada órgão judicial; significa, isto sim, os limites legais impostos ao exercício válido e regular do poder jurisdicional por aqueles, ou, por outras palavras, a competência legitima o exercício do poder, pelo órgão jurisdicional, em um processo concretamente considerado.
B I B L I O G R A F I A
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Texto extraído do site jus navigandi em 21/09/2009: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2923&p=1pelo
Antonio Carlos Marcato: professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, coordenador acadêmico do CPC – Curso Preparatório para Concursos.
*Colaboradora: Meirivan Peixoto de Jesus (aluna do curso de Direito da Universidade Tiradentes, 3º período - 21/09/2009)

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