segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Direitos SociaisO protesto das togas
Márcia Novaes Guedes*A semana terminou com os Juízes do Trabalho na Praça pública, se mobilizandopela efetivação dos direitos trabalhistas. Em Salvador, os Juízes secolocaram em frente ao Elevador Lacerda, cartão postal da cidade, na PraçaTomé de Souza, para distribuir uma cartilha que detalha os direitos básicosdos trabalhadores, isto é, o contrato mínimo: Carteira do Trabalho ePrevidência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, jornada detrabalho de 44 horas semanais, segurança e saúde, repouso e alimentaçãoentre as jornadas, férias e gratificação de Natal e, quando dispensado,aviso prévio e seguro desemprego.As mobilizações fazem parte da Campanha Nacional lançada pelaAnamatra(Associação dos Magistrados do Trabalho) que escolheu o dia 05 deoutubro (Dia da Cidadania) para a luta contra a flexibilização dos direitosdos trabalhadores brasileiros. E também denunciar diversas outras violaçõesdas relações de trabalho como a terceirização e o cooperativismofraudulentos, a contravenção penal pelo descumprimento das normas desegurança, higiene e saúde do trabalhador e o assédio moral.A Campanha tem como objetivo, também, reforçar e acelerar as discussões emfavor das mudanças na legislação tendo como móvel a efetividade dos direitostrabalhistas, considerados essência dos Direitos Fundamentais da PessoaHumana. Para outras informações, a Anamatra disponibilizou um site exclusivopara a Campanha: www.anamatra.org.br/efetivação.Apesar de afogados em leis, a maioria dos trabalhadores brasileiros viveprecariamente na informalidade. Um dos pontos altos da Campanha é o respeitoà CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, uma senhora lei de quase 70 anos,cujo artigo 29 determina que o empregador anote a data de admissão, aremuneração e as condições especiais de trabalho, se houver. Além deregistrar, carimbar e assinar o documento no prazo de 48 horas.Sem CTPS assinada, o trabalhador é menos cidadão. Não pode comprar acrédito, abrir conta nem fazer empréstimo bancário. Nem sequer sonhar com aaquisição da casa própria, pois sem registro na CTPS não há recolhimento deFGTS. Se adoecer ou, se for mulher e engravidar, vai depender da caridadepública, pois o sistema previdenciário é tripartite - quer dizer, funcionacom a contribuição do Governo, dos patrões e dos trabalhadores, de quem oempregador está obrigado a descontar e recolher mensalmente ao INSS.O desrespeito a essa norma básica das relações de trabalho no Brasil éincentivada pela indiferença da sociedade, que dá de ombros para abanalização do mal no trabalho. A falta de registro em CTPS, com afinalidade de fraudar os direitos do empregado e a Previdência Social, éconsiderada crime, previsto no artigo 297, § 4º do Código Penal.O resultado dessa medida, porém, é pífio, pois os patrões continuamcontratando ao arrepio da lei, sob a desculpa de que não podem arcar com osencargos sociais. E entre Juízes e Promotores de Justiça corre acirradadiscussão acerca da competência da Justiça do Trabalho para impor talcondenação. Afora a atuação corajosa de uns poucos juízes, que, tomando osdireitos fundamentais como base de suas decisões, condenam empregadores emdanos morais e não admitem instruir alegação de justa causa levantada peloempregador quando este não cumpriu as obrigações do contrato (CLT, art. 483,d), a ilicitude não encontra cobro diante da insuficiente fiscalização doministério do Trabalho.O brasileiro é cordial e, certas vezes, indiferente à injustiça social.Participamos das festividades, aniversários e casamentos sem nos preocuparse os "serviçais" têm seus direitos básicos respeitados. Entramos e saímosde lojas, mercados e shoppings sem reparar que o comércio contrata saláriomínimo e comissões, mas, na prática, continua valendo a regra "se produzircome, se não produzir, não come".O desprezo pelos pobres, em algun, vai além: temos medo deles. Numa festa deaniversário ouvi de uma médica a seguinte explicação: "os pobres sãoconfundidos com bandidos, porque nessa classe o número deles é maior".Sonegar salários e outros direitos sociais não é considerado furto. E apesarda redação da Lei 9.983, de 14/07/2000, que introduziu o § 4º ao artigo 297do Código Penal, para o jurista Damásio de Jesus não constitui delito asingela conduta do empregador deixar de registrar o empregado.Domésticas e babás trabalham 12 horas seguidas, muitas vezes sem receber osalário mínimo, cuidando da casa e dos filhos da classe média, enquanto osfilhos delas crescem sem a companhia dos pais e do Estado. O desprezo que asclasses abastadas e remediadas nutrem pelos trabalhadores sugere temas aoteatro do absurdo.Minha fisioterapeuta contou-me que, ao ser apresentada a uma distinta damada sociedade local, dentre as lições de boas maneiras e etiquetas, ouviu aseguinte pérola: "não deveria permitir que a babá de seu filho se vestissede modo a causar confusão nas pessoas, a babá não poderia ser confundida comsua irmã". Afinal, ela (a babá) deveria saber qual é o seu lugar na escalasocial!Esse inominável preconceito social encontra reforço na imprensa dominante.Recentemente, a colunista de um dos mais lidos jornais do País - cujacirculação média, de segunda a sexta-feira, é de exatos 299.473exemplares -, orgulhosamente revelou no frontispício da primeira página (!),ao ensaiar uma explicação para o apoio popular revelado por uma pesquisa deopinião ao presidente da República, que o apoio vem dos "seres simples",beneficiados pelos programas sociais. O sentido discriminatório da opiniãoveiculada pelo jornal, felizmente, não passou despercebido por umjornalista, famoso por sua independência de opinião, que concluiu: acolunista, certamente, se considera um "ser complexo".A República e a economia de mercado foram forjadas com a exclusão dosex-escravos, considerados sub-raça destinada ao desaparecimento. A naçãodesejada por nossa elite não poderia ser formada pelo "rebotalho", mas pelobranco europeu, cuja imigração foi incentivada. Somos o único povo queconseguiu se "modernizar" sem romper com a senzala. De modo inédito, atransportamos para os modernos e arrojados prédios de apartamentos, onde umalinha divisória, aparentemente invisível, separa a "área de serviço" da"área social". Do velho engenho de cana-de-açúcar ao agronegócio do etanol,nosso processo civilizatório segue linear, combinando exclusão social ecinismo que se revelam no emprego da fraude nas relações de trabalho,incluindo, em pleno século XXI, o trabalho escravo nos setores de ponta daeconomia.A resistência da elite brasileira em se tornar cidadã é notória. SegundoRaymundo Faoro, nossa elite é marginal. A elite manda, mas não aceita sercidadã. Essa elite marginal imagina que pode modernizar o país excluindo opovo e os que pensam em defesa da inclusão social, como na sátira de Machadode Assis, descrita no conto "O Alienista", no qual um sábio, a pretexto deestudar a loucura, interna num hospício três quartos da população.Assim, o projeto de "modernização" dessa elite marginal inclui a redução depessoas à condição análoga à de escravo. Na verdade, o trabalho escravocontemporâneo é um elo na cadeia produtiva que vem sendo denunciado peloBispo de São Felix do Araguaia, Dom Pedro Casaldaliga desde 1971. Ocrescente aumento do número de denúncias obrigou o governo a criar o GrupoMóvel de Fiscalização do ministério do Trabalho, que, em parceria comorganismos não governamentais e com a Procuradoria do Trabalho, já libertou,desde o início do programa, mais de 25 mil trabalhadores escravos. A maioriaestá concentrada nas atividades de criação, pastagem e insumos agrícolas,seguidos daqueles encontrados nas plantações de soja e de algodão e nasatividades de plantio e corte de cana-de-açúcar. A Justiça do Trabalho,porém, se apercebeu do problema muito mais tarde e somente em 2005 instaloua Vara do Trabalho de São Felix, onde hoje a corajosa atuação do Juiz JoãoHumberto Cesário no combate e erradicação do trabalho escravo tornou famosaa região, antes conhecida como o "Vale dos Esquecidos".O lobby desses "modernos" senhores de engenho, no entanto, é poderoso, aponto de suspender o trabalho de fiscalização do ministério. Nasegunda-feira, 24 de setembro, a Justiça do Trabalho aceitou a Ação CivilPública movida pela Procuradoria do Trabalho que, com base no resultado deuma fiscalização realizada pelo Grupo Móvel, denuncia a existência detrabalho escravo na Pagrisa. Na fazenda dessa empresa em Uianópolis, a 417km de Belém, foram encontrados 1.060 trabalhadores reduzidos à condiçãoanáloga á de escravos. Essa foi a maior libertação já feita desde a criaçãodo Grupo."Eles nos tratavam como porcos". Assim um dos trabalhadores libertadosresumiu as condições de trabalho na Pagrisa. E não exagerou. Segundo osrelatórios dos fiscais, a empresa violava as normas de proteção ao saláriopraticando o velho e abominável truck system (vendendo alimentos e remédiosaos trabalhadores por preços bem superiores aos praticados no mercadolivre); e praticava contravenção penal descumprindo as normas de higiene,saúde e segurança do trabalho, obrigando os empregados a trabalhar semdescanso. E até os alimentos fornecidos estavam deteriorados com a presençade bactérias, vermes e fungos.Acontece que os donos dessa empresa são poderosos e têm aliados de peso noSenado Federal. Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e Kátia Abreu (DEM-TO), acusaram osfiscais de praticarem "abuso de poder", e conseguiram suspender o trabalhode fiscalização. Desde o dia 20 de setembro, as ações de combate eerradicação do trabalho escravo estão suspensas.A construção da nossa racionalidade passa pela destruição dessa elite, istoé, vai acontecer na medida em que ela se tornar cidadã. Nisso os Juízespodem dar uma grande colaboração: primeiro, fazendo tesouro da lição deHannah Arendt (Eichmann em Jerusalém, 1962), segundo a qual a Justiça nãoadmite a teatralidade dos gestos, das condutas estudadas, mas requer oisolamento. Admite mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosaabstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores.Segundo, é preciso cuidar para que o protesto na praça pública não setransforme num palanque feito sob medida para os ávidos de ascensãoprofissional, mas que em nome da disciplina judiciária seguem indiferentes,remando a favor da corrente e dando as costas à desestabilizadorabanalização do mal. Por fim, é preciso não esquecer que o povo, cansado dainjustiça social, deseja ver coerência entre o discurso e a práticajudiciária.O trabalho dos Juízes não termina na Ágora, mas no fórum, no recesso dogabinete e a efetividade da justiça vai acontecer na medida em que os juízesse empenharem em reverter com decisões corajosas o resultado de uma pesquisacientífica recentemente divulgada e que revela que o Judiciário brasileiro,inclusive o trabalhista, não realiza justiça social.* Márcia Novaes Guedes é juíza do trabalho, doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma - Tor Vergata e membro da Associação dos Juízes para a Democracia. [artigo publicado originalmente na revista Terra Magazine, dia 08/10]

Extraído do site http://www.ajd.org.br/ler_noticiaa.php?idNoticia=154

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