domingo, 13 de setembro de 2009

MUITO BOM ESTE TEXTO

A legitimidade da atuação do juiz a partir do direito
fundamental à tutela jurisdicional efetiva
Luiz Guilherme Marinoni
Professor Titular de Direito Processual Civil na UFPR. Advogado em Curitiba e em Brasília
Sumário: 1. A jurisdição a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva; 2.
As normas processuais abertas como decorrência do direito fundamental à tutela
jurisdicional; 3. A ausência de regra processual capaz de viabilizar a realização do
direito fundamental à tutela jurisdicional; 4. A subjetividade do juiz e a necessidade de
explicitação da correção da tutela jurisdicional mediante a argumentação jurídica; 5. A
argumentação jurídica em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental
à tutela jurisdicional.
1. A jurisdição a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva
O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre o
legislador e o juiz, ou seja, sobre a estruturação legal do processo e sobre a
conformação dessa estrutura pela jurisdição.
Assim, obriga o legislador a instituir procedimentos e técnicas
processuais capazes de permitir a realização das tutelas prometidas pelo
direito material e, inclusive, pelos direitos fundamentais materiais, mas que não
foram alcançadas à distância da jurisdição. 1 Nesse sentido se pode pensar,
por exemplo, i) nos procedimentos que restringem a produção de determinadas
provas ou ii) a discussão de determinadas questões, iii) nos procedimentos
dirigidos a proteger os direitos transindividuais, iv) na técnica antecipatória, v)
nas sentenças e vi) nos meios de execução diferenciados. Na mesma
dimensão devem ser visualizados os procedimentos destinados a permitir a
facilitação do acesso ao Poder Judiciário das pessoas menos favorecidas
economicamente, com a dispensa de advogado, custas processuais etc.2
Porém, não basta parar na idéia de que o direito fundamental à tutela
jurisdicional incide sobre a estruturação técnica do processo, pois supor que o
1 Dimaras, Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß
der Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.
2 Os procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis.
legislador sempre atende às tutelas prometidas pelo direito material e às
necessidades sociais de forma perfeita constitui ingenuidade inescusável. 3
Aliás, se o legislador sempre atuasse de maneira ideal, jamais haveria
necessidade de subordinar a compreensão da lei à Constituição, mesmo
quando a lei se refere ao direito material. Ou seja, é justamente porque se teme
que a lei possa se afastar dos princípios constitucionais e dos direitos
fundamentais, que se afirma que o direito fundamental à tutela jurisdicional
incide sobre a compreensão judicial das normas processuais.
A obrigação de compreender as normas processuais a partir do direito
fundamental à tutela jurisdicional e, assim, considerando as várias
necessidades de direito substancial, dá ao juiz o poder-dever de encontrar a
técnica processual idônea à proteção (ou à tutela) do direito material.
O encontro da técnica processual adequada exige a interpretação da
norma processual de acordo com o direito fundamental à tutela jurisdicional
efetiva, e também, para se evitar a declaração da sua inconstitucionalidade, o
seu tratamento através das técnicas da interpretação conforme e da declaração
parcial de nulidade sem redução de texto. 4
A interpretação de acordo pressupõe que a interpretação da lei segundo
os métodos clássicos tenha conduzido a duas ou mais interpretações viáveis.
Nesse caso, deve-se buscar a interpretação que permita a efetiva tutela do
direito – identificado no caso concreto. É nesses termos que se diz que a
interpretação é feita de acordo com o direito fundamental à tutela jurisdicional
efetiva.
Em outras situações, para não se declarar a inconstitucionalidade de
uma regra processual, é preciso agregar significado ao seu texto,
conformando-o com a Constituição, e desta forma fazendo-se a interpretação
conforme. Assim, por exemplo, ao analisar a norma que afirma que a tutela
3 Wautelet, P., Le droit au procès équitable et l’égalité des armes, in L’efficacité de la Justice
Civile en Europe –Caupain Therése/De Leval Georges (Hrsg.) Bruxelles 2000, pp. 101-129;
Couture, Eduardo, Der verfassungsmäßige Schutz des Prozesses, ZZP 67 (1954) 128; Dimaras,
Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß der
Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.; Kirchhof,
Paul, Verfassungsrechtliche Maßstäbe für die Verfahrensdauer und die Rechtsmittel, FS
Doehring, 1989, p. 438.
4 Schwab, Karl-Heinz/Gottwald, Peter, Verfassung und Zivilprozess, in Effektiver Rechtsschutz,
1983, pp. 1-10; v. Lorenz, Dieter ,Grundrechte und Verfahrensordnungen , NJW 1977, 865.
antecipatória não pode ser concedida quando puder causar efeitos irreversíveis
ao réu5, o juiz, ao invés de declarar a sua inconstitucionalidade, deverá concluir
que o texto legal apenas proíbe a sua concessão quando o valor do direito do
demandado, diante do caso concreto, não justificar tal risco. Isso porque o risco
de prejuízo irreversível, como é óbvio, não pode impedir, por si só, a concessão
da tutela antecipatória, pois essa tem como requisito o risco de lesão a um
direito mais provável que o do réu. Ora, se o direito do autor é provável e está
sendo ameaçado de lesão (e isso é premissa para a concessão da tutela
antecipatória), é completamente irracional e injustificável pensar que o direito
do réu – que então é improvável – não pode ser exposto a risco.
Na declaração parcial de nulidade sem redução de texto há a declaração
da inconstitucionalidade de algumas interpretações da norma, mas a adoção
de uma interpretação que esteja de acordo com o caso concreto, apesar de
outras serem abstratamente viáveis.
Por outro lado, o legislador está consciente, hoje, de que deve dar aos
jurisdicionados e ao juiz maior poder para a utilização do processo. É por isso
que institui normas processuais abertas (como a do art. 461 do CPC), ou seja,
normas que oferecem um leque de instrumentos processuais, dando ao
cidadão o poder de construir o modelo processual adequado e ao juiz o poder
de utilizar a técnica processual idônea à tutela da situação concreta.6
O legislador, ao fixar tais normas, parte da premissa de que, por ser
impossível predizer todas as necessidades futuras e concretas, é
imprescindível dar poder aos operadores do direito para a identificação e a
utilização dos meios processuais adequados às variadas situações. É correto
falar, nesse sentido, em concretização da norma processual, isto é, na
aplicação da norma processual no caso concreto, ou, ainda, na identificação e
utilização da técnica processual – apenas autorizada pela norma – adequada
às necessidades concretas.
Nessas hipóteses, a concretização da norma processual deve tomar em
conta as necessidades de direito material reveladas no caso, mas a sua
5 Art. 273 – (....)
§2º “Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do
provimento antecipado”.
(...).
6 Ver item adiante.
instituição decorre, evidentemente, do direito fundamental à tutela jurisdicional
efetiva. O legislador atua porque é ciente de que a jurisdição não pode dar
conta das variadas situações concretas sem a outorga de maior poder e
mobilidade, ficando o autor incumbido da identificação das necessidades
concretas para modelar a ação processual, e o juiz investido do poder-dever
de, mediante argumentação própria e expressa na fundamentação da sua
decisão, individualizar a técnica processual capaz de lhe permitir a efetiva
tutela do direito.
Além disso, as necessidades do caso concreto podem reclamar técnica
processual não prevista em lei, quando o juiz poderá suprir a omissão
obstaculizadora da realização do direito fundamental à tutela jurisdicional,
mediante o que se pode denominar de técnica de controle da
inconstitucionalidade por omissão.7
É fácil perceber que, em todas essas situações, a lei processual é
pensada segundo as necessidades de direito material particularizadas no caso
concreto. A compreensão do processo à luz do direito fundamental à tutela
jurisdicional requer a percepção da natureza instrumental da norma processual,
isto é, de que ela deve permitir ao juiz encontrar uma técnica processual idônea
à tutela das necessidades do caso conflitivo. 8
2. As normas processuais abertas como decorrência do direito fundamental à
tutela jurisdicional
Na época do Estado liberal clássico, vigorava no processo civil o
chamado princípio da tipicidade das formas executivas, que tinha o significado
de impedir a utilização, por parte das partes e do juiz, de meios executivos não
expressamente previstos na lei. Esse princípio objetivava garantir a liberdade
dos litigantes diante da jurisdição. Medindo-se o poder de atuação do juiz pela
lei, eram garantidas as formas mediante as quais a atividade jurisdicional
poderia ser exercida. Dava-se ao litigante a garantia de que, no caso de sua
7 Ver item adiante.
8 Dimaras, Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß
der Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.; Lorenz,
Dieter, Grundrechte und Verfahrensordnungen, NJW 1977, 865.
eventual condenação, a jurisdição não poderia ultrapassar os limites dos meios
executivos tipificados.
Acontece que, com o passar do tempo, tornou-se necessário munir os
litigantes e o juiz de uma maior latitude de poder, seja para permitir que os
jurisdicionados pudessem utilizar o processo de acordo com as novas
situações de direito material e com as realidades concretas, seja para dar ao
juiz a efetiva possibilidade de tutelá-las.
Tal necessidade levou o legislador não só a criar uma série de institutos
dependentes do preenchimento de conceitos indeterminados – como a tutela
antecipatória fundada em “abuso de direito de defesa” (art. 273, II, CPC) -,
admitindo o seu uso na generalidade dos casos, mas também a fixar o que
denomino de normas processuais abertas (art. 461, CPC).
Essas regras decorrem da aceitação da idéia de que a lei não pode
atrelar as técnicas processuais a cada uma das necessidades do direito
material ou desenhar tantos procedimentos especiais quantos forem supostos
como necessários à tutela jurisdicional dos direitos.
A lei processual não pode antever as verdadeiras necessidades de
direito material, uma vez que essas não apenas se transformam diariamente,
mas igualmente assumem contornos variados, conforme os casos concretos.
Diante disso, chegou-se naturalmente à necessidade de uma norma processual
destinada a dar aos jurisdicionados e ao juiz o poder de identificar, ainda que
dentro da sua moldura, os instrumentos processuais adequados à tutela dos
direitos.
Acontece que as normas processuais abertas não apenas conferem
maior poder para a utilização dos instrumentos processuais, como também
outorgam ao juiz o dever de demonstrar a idoneidade do seu uso, em vista da
obviedade de que todo poder deve ser exercido de maneira legítima.
Se antes o controle do poder jurisdicional era feito a partir do princípio
da tipicidade, ou da definição dos instrumentos que podiam ser utilizados, hoje
esse controle é mais complexo e sofisticado. A legitimidade do uso dos
instrumentos processuais do art. 461, que abre aos cidadãos e ao juiz um
leque de instrumentos processuais destinados a viabilizar a denominada “tutela
específica”, depende da identificação da espécie de tutela específica (tutela
inibitória9 etc) objeto do caso concreto, da consideração do direito de defesa e,
obviamente, da racionalidade da argumentação expressa na fundamentação da
decisão ou da sentença.
O art. 461 do CPC afirma que o juiz poderá impor multa diária ao réu
para constrangê-lo ao cumprimento de uma ordem de fazer ou de não fazer,
seja na concessão da tutela antecipatória, seja na sentença concessiva da
tutela final (art. 461, §§3º e 4º), ou ainda determinar, para dar efetividade a
qualquer uma dessas decisões, as “medidas necessárias”, que são
exemplificadas, pelo §5º do artigo 461, com a busca e apreensão, a remoção
de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade
nociva.
O legislador deu ao juiz o poder de impor o meio executivo adequado
(art. 461, §§4º e 5º), adotar a sentença idônea e conceder a tutela antecipatória
(art. 461, §3º), fazendo referência apenas às técnicas processuais que podem
ser utilizadas, mas não precisando em que situações de direito material, e
muito menos em que casos concretos, elas podem ser aplicadas.
De modo que, para a adequada aplicação da norma do art. 461, o juiz é
obrigado a identificar e precisar as necessidades de direito material
particularizadas no caso concreto. Ou seja, não há como o juiz ordenar um
fazer ou um não-fazer sob pena de multa, determinar a busca e apreensão ou
conceder a tutela antecipatória (sempre por exemplo), sem anteriormente
compreender a razão pela qual está atuando, ou melhor, sem antes identificar
a espécie de tutela específica solicitada (inibitória, de remoção de ilícito,
ressarcitória etc) e os seus pressupostos (ameaça de ilícito, prática de ato
contrário ao direito, dano etc).10
Os procedimentos e as técnicas processuais somente adquirem
substantividade quando relacionados ao direito material e às situações
concretas, e por isso podem ser ditos neutros em relação ao direito substancial
e à realidade social quando pensados como procedimentos ou técnicas
voltados, por exemplo, à imposição de um fazer ou à busca e apreensão. Ora,
não é preciso muito esforço para evidenciar que impor um fazer, ou determinar
9 V. Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória, São Paulo: Ed. RT, 2003, 3ª. ed.
10 V. Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, São Paulo, Ed. RT,
2004.
a busca e apreensão, não tem qualquer significado no plano do direito material
ou concreto.
Não é por outra razão que se fala em tutela inibitória, ressarcitória, do
adimplemento na forma específica etc. Perceba-se que “tutela” significa o
resultado jurídico-substancial do processo, representando o impacto do
processo no plano do direito material. Quando se teoriza o tema das “tutelas”
se tem em mira exatamente a imprescindibilidade da identificação das
situações de direito material para a compreensão crítica da lei processual e
para o delineamento das técnicas processuais capazes de outorgar efetividade
à prestação jurisdicional e, assim, colocá-la em uma dimensão realmente
capaz de concretizar o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
Contudo, quando se pensa na técnica processual capaz de garantir a
efetividade da tutela do direito, não é possível esquecer da esfera jurídica do
réu. Se é possível escolher a técnica processual capaz de dar proteção ao
direito, não há como admitir que essa escolha possa prejudicar o demandado.
Isso quer dizer que a utilização da técnica processual, diante da norma
processual aberta, tem a sua legitimidade condicionada a um prévio controle,
que considera tanto o direito do autor, quanto o direito do réu.
Esse controle pode ser feito a partir de duas sub-regras da regra da
proporcionalidade, isto é, das regras da adequação e da necessidade. A
providência jurisdicional deve ser: i) adequada e ii) necessária. Adequada é a
que, apesar de faticamente idônea à proteção do direito, não viola valores ou
os direitos do réu. Necessária é a providência jurisdicional que, além de
adequada, é faticamente efetiva para a tutela do direito material e, além disso,
produz a menor restrição possível ao demandado; é, em outras palavras, a
mais suave.11
Porém, a necessidade de raciocinar a partir da consideração da tutela no
plano direito material e do direito de defesa não teria significado sem a devida
11 Sobre a regra da proporcionalidade, ver, no direito brasileiro, Paulo Bonavides, Curso de
Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 314 e ss; Luis Roberto Barroso,
Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo, Saraiva, 1996; Raquel Denize Stumm,
Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, Porto Alegre, Livraria do
Advogado, 1995, Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle da
constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília, Brasília Jurídica,
1996; Paulo Arminio Tavares Buechele, O princípio da proporcionalidade e a interpretação da
Constituição, Rio de Janeiro, Renovar, 1999.
justificativa, isto é, sem a motivação capaz de expressar adequadamente o
raciocínio judicial. A justificativa permite controle crítico sobre o poder do juiz12,
sendo que o equívoco da justificativa evidencia a ilegitimidade do uso da
técnica processual.
A ampliação do poder de execução do juiz, ocorrida para dar maior
efetividade à tutela dos direitos, possui, como contrapartida, a necessidade de
que o controle da sua atividade seja feita a partir da compreensão do
significado das tutelas no plano do direito material, das regras da adequação e
da necessidade e mediante o seu indispensável complemento, a justificação
judicial. Em outros termos: pelo fato de o juiz ter poder para a determinação da
melhor maneira de efetivação da tutela, exige-se dele, por conseqüência, a
adequada justificação das suas escolhas. Nesse sentido se pode dizer que a
justificativa é a outra face do incremento do poder do juiz.
Na justificativa o juiz deve dizer a razão pela qual preferiu uma
modalidade de execução e não outra. Ou seja, porque preferiu, por exemplo,
ordenar a instalação de um equipamento antipoluente ao invés de ordenar a
cessação das atividades da empresa ré. Tal opção deve configurar o meio mais
idôneo à tutela do direito, concretizando o meio que, além de menos restritivo
ao réu, seja capaz de dar tutela efetiva ao direito.
As sub-regras da proporcionalidade, embora façam parte do raciocínio
decisório, pois viabilizam a decisão, obviamente não podem ser ignoradas
quando da justificativa. Até porque tais regras não servem apenas para facilitar
a decisão, mas muito mais para que se possa justificá-la de modo racional,
permitindo-se o seu controle pelas partes.
O crescimento do poder de atuação do juiz e a conseqüente
necessidade de outros critérios de controle da decisão judicial nada mais são
do que reflexos das novas situações de direito substancial e da tomada de
consciência de que o Estado tem o dever de dar proteção efetiva aos direitos.
12 V. Michele Taruffo, La motivazione della sentenza civile. Padova: Cedam, 1975, p. 194-195,
Michele Taruffo, Funzione della prova: la funzione dimostrativa, Rivista trimestrale di diritto e
procedura civile, 1997, p. 553-554; Michele Taruffo, Il controllo di razionalita’ della decisione
fra logica, retorica e dialettica, in: www.studiocelentano.it/le nuove voci del diritto; Michele
Taruffo, La motivazione della sentenza, Revista de Direito Processual Civil (Genesis Editora),
v. 30, p. 674 e ss; Michele Taruffo, Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz,
Conferência proferida na Faculdade de Direito da UFPR; Curitiba, março de 2001, p. 17.
3. A ausência de regra processual capaz de viabilizar a realização do direito
fundamental à tutela jurisdicional
Resta ainda tratar dos casos de ausência de técnica processual ou de
previsão de técnica processual para uma situação diferente da contemplada no
caso concreto. Tome-se como exemplo o caso da execução da tutela
antecipatória de soma em dinheiro. O art. 273, §3º, do CPC, afirma que “a
efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua
natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4º e 5º, e 461-A”. Como o
art. 461 trata da sentença que impõe fazer ou não-fazer, o art. 461-A da
sentença que impõe entrega de coisa, e o art. 588 diz respeito apenas à
eficácia da execução na pendência do processo - e não sobre a forma
mediante a qual a execução de soma deve se realizar -, conclui-se que essa
norma se omitiu em relação à forma da execução da tutela antecipatória de
soma em dinheiro.
Essa omissão, no entanto, pode ser seguramente suprida quando se
tem consciência de que a técnica processual depende apenas da
individualização das necessidades do caso concreto. Quer dizer que se o juiz
identifica a necessidade de antecipação de soma em dinheiro, e por isso
mesmo concede a tutela antecipatória, acaba lhe sendo fácil identificar a
necessidade de um meio executivo capaz de dar efetivo atendimento à tutela
antecipatória.
Esse meio executivo, dada a urgência que deve ser admitida como
existente para a concessão da antecipação da soma em dinheiro, obviamente
não pode ser aquele que foi pensado para dar atuação à sentença que
condena ao pagamento de dinheiro. Como as necessidades de direito material
que têm relação com a tutela antecipatória e a sentença condenatória são
aberrantemente distintas, é pouco mais do que evidente que os meios
executivos devem ser com elas compatíveis.
Se o objetivo da multa é dar maior celeridade e efetividade à realização
das decisões judiciais, não há racionalidade em admiti-la apenas em relação às
decisões que determinam fazer, não fazer ou entrega de coisa. No caso de
soma em dinheiro, a multa, além de “livrar” a administração da justiça de um
procedimento oneroso e trabalhoso e beneficiar a parte com a eliminação dos
custos e dos entraves da execução por expropriação, confere à tutela
antecipatória a tempestividade necessária para que ela possa dar efetiva
proteção ao direito material e, assim, realizar o direito fundamental à tutela
jurisdicional13. Como é simples concluir, a multa é meio imprescindível para a
execução da tutela antecipatória de soma e para permitir que o juiz responda
ao direito fundamental à tutela jurisdicional.
Como esse direito fundamental incide sobre o Estado e, portanto, sobre
o legislador e o juiz, é evidente que a omissão do legislador não justifica a
omissão do juiz. Melhor explicando: se tal direito fundamental, para ser
realizado, exige que o juiz esteja munido de poder suficiente para a proteção -
ou tutela - dos direitos, a ausência de regra processual instituidora de
instrumento processual idôneo para tanto constitui evidente obstáculo à
atuação da jurisdição e ao direito fundamental à tutela jurisdicional. Diante
disso, para que a jurisdição possa exercer a sua missão – que é tutelar os
direitos – e para que o cidadão realmente possa ter garantido o seu direito
fundamental à tutela jurisdicional, não há outra alternativa a não ser admitir ao
juiz a supressão da omissão inconstitucional.
4. A subjetividade do juiz e a necessidade de explicitação da correção da tutela
jurisdicional mediante a argumentação jurídica
É evidente que a necessidade de compreensão da lei a partir da
Constituição confere ao juiz maior subjetividade, o que vincula a legitimidade
da prestação jurisdicional à explicação da sua correção. Mas, o problema da
legitimidade da tutela jurisdicional, no Estado contemporâneo, está em verificar
se é possível atribuir correção à decisão do juiz, ou melhor, encontra-se na
definição do que se pretende dizer com correção da decisão jurisdicional.
13 A “execução” sob pena de multa somente tem sentido em relação ao devedor que possui
patrimônio suficiente para responder ao crédito. Na hipótese de devedor sem patrimônio, não
cabe, como é óbvio, a “execução” sob pena de multa. Assim, na hipótese de antecipação da
“execução”, o juiz deve dar ao réu a oportunidade de justificar o não adimplemento. Além disso,
é fundamental que o juiz estabeleça prazo suficiente para o réu adimplir, sendo que a sua
justificativa também pode ser no sentido de que necessita de mais tempo para cumprir a
obrigação (V. Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela, São Paulo: Ed. RT, 2004, 8ª.
ed).
Na verdade, não é possível chegar a uma teoria da decisão correta, isto
é, a uma teoria que seja capaz de sustentar a existência de uma decisão
correta para cada caso concreto. Porém, a circunstância dessa impossibilidade
não pode retirar do juiz o dever de demonstrar que a sua decisão é racional e,
nessa linha, a melhor que poderia ser proferida diante da lei, da Constituição e
das peculiaridades do caso concreto. 14
Acontece que uma decisão não é racional em si, pois a racionalidade da
decisão não é atributo dela mesma. Uma decisão “se mostra” racional ou não.
Para tanto, necessita de “algo”, isto é, da racionalidade da argumentação. Essa
argumentação, a cargo da jurisdição, é que pode demonstrar a racionalidade
da decisão e, nesse sentido, a decisão correta. 15
É certo que a decisão deve se guiar pela lei, mas isso obviamente não é
suficiente como argumento em favor de uma decisão correta. Decisão racional
não é o mesmo do que decisão baseada apenas em dados dotados de
autoridade; a decisão judicial exige que a argumentação recaia em pontos que
não podem ser dedutivamente expostos.16 Ou melhor, a racionalidade do
discurso judicial necessariamente envolve a racionalidade do discurso que
objetiva um juízo prático ou moral17.
Segundo Alexy, não são possíveis teorias morais materiais que dêem
uma única resposta, intersubjetivamente concludente, a cada questão moral,
porém são possíveis teorias morais procedimentais que formulem regras ou
condições da argumentação ou da decisão prática racional, sendo que a teoria
do discurso prático racional é uma versão muito promissora de uma teoria
material procedimental. Essa teoria tem uma grande vantagem sobre as teorias
14 V. Chayes, A., How Does the Constitution Establish Justice? 101 Harv. L. Rev. 1026 (1988).
15 Schlüter, Wilfried, Das Obiter Dictum, München, Beck, 1973, pp. 29-33.
16 A respeito da argumentação jurídica, além das teses precursoras de Perelman (Perelman e
Olbrecht-Tyteca, Trattato dell’argomentazione, Torino: Einaudi, 1966), Viehweg (Tópica e
jurisprudência, Brasília: UNB, 1979) e Toulmim (The uses of argument, Cambridge:
Cambridge Universiy Press, 1958), são fundamentais as teorias de MacCormick (Legal
reasoning and legal theory, Oxford: Oxford University Press, 1978) e Alexy (Teoria da
argumentação jurídica, São Paulo: Landy, 2001)
17 Sobre a conexão entre direito e moral no pensamento de Alexy, ver a polêmica travada entre
Alexy e Bulygin, La pretensión de corrección del derecho, Bogotá: Universidad Externado de
Colombia, 2001; v. ainda Robert C. Farrel, Legislative Purpose and Equal Protection´s
Rationality Review, 37 Vill. L. Rev. I, 7 (1992).
morais materiais, pois é muito mais fácil fundamentar as regras da
argumentação prática racional do que as regras morais materiais.18
Para o aperfeiçoamento da racionalidade da argumentação judicial,
Alexy propõe a passagem por quatro procedimentos ou a criação de um
procedimento com quatro etapas ou graus: o primeiro é o discurso prático,
envolvendo um sistema de regras que formula uma espécie de código geral da
razão prática; o segundo é o procedimento legislativo, constituído por um
sistema de regras que garante uma considerável medida de racionalidade
prática e, nesse sentido, justifica-se dentro das linhas do discurso prático.
Depois seguem o discurso jurídico e o procedimento judicial.19
A teoria do discurso jurídico se assemelha à teoria do discurso prático
por também constituir uma teoria procedimental fundada em regras de
argumentação e ser incapaz de levar a um único resultado, caracterizando-se
por ser sujeita à lei e à Constituição, aos precedentes judiciais e à dogmática.
O discurso jurídico restringe a margem de insegurança do discurso prático,
mas obviamente não permite chegar a um grau de certeza suficiente, não
eliminando a insegurança do resultado20.
No procedimento judicial, do mesmo modo do que ocorre no
procedimento legislativo, há argumentação e decisão. Os resultados do
procedimento judicial são razoáveis, segundo Alexy, se as suas regras e a sua
realização satisfazem as exigências dos procedimentos que lhe antecedem,
isto é, as regras do discurso prático, do procedimento legislativo e do discurso
jurídico21.
Para maior aprofundamento, ver Luiz Guilherme Marinoni, Curso de
Processo Civil, Teoria Geral do Processo, v. 1, 2a. ed., São Paulo, Ed. Revista
dos Tribunais, 2007.
18 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002, p. 530.
19 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 531.
20 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 532; v. Jules Coleman, Truth and
Objetivity in Law, 1995, Legal Theory 33, p. 48-54.
21 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 532.

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